PABLO ESCOBAR, MEU PAI – CAPÍTULO 15: Preocupem-se quando eu amarrar os tênis
CAPÍTULO 15
PREOCUPEM-SE QUANDO EU AMARRAR OS TÊNIS
Palavras por Juan Sebastián Marroquín
A campainha tocou mais forte que de costume e eu, minha mãe e Manuela saltamos feito molas das cadeiras da sala de jantar. Alguém havia chegado e, de forma pouco habitual, os vigilantes não avisaram pelo interfone.
Corri até a porta blindada e à prova de bombas e verifiquei se os ferrolhos estavam bem fechados.
– Quem é? – disse, mudando o tom de voz.
– Sou eeeeeu – responderam do outro lado com uma voz dissimulada, imitando uma mulher, que me pareceu conhecida.
De fato, era “Popeye”, que viera nos buscar para nos levar ao esconderijo de meu pai, de quem não tínhamos notícias desde a terça-feira anterior, 21 de Julho de 1992, quando fugiu do presídio de La Catedral.
Preparamos as malas para muitos dias e, como sempre, não faltaram diversos pratos de comida caseira e sobremesas que minha mãe preparava em poucos minutos quando se encontrava numa situação como aquela.
– É para levarmos para seu pai – respondeu, quando expliquei que estávamos com pressa, e aquela grande quantidade de comida não caberia no pequeno Renault 4 dirigido por “Popeye”. Mas ela não deu bola.
Então saímos com minha mãe no assento dianteiro e Manuela e eu atrás, apertados em meio às malas e travessas que ameaçavam se quebrar com os movimentos do carro.
Retornamos outra vez à clandestinidade, e nenhum de nós sabia naquele momento que estávamos dando início a uma viagem sem volta. Ainda que dessa vez fosse diferente: ao escapar de La Catedral, meu pai havia dilapidado a melhor opção para reestruturar sua vida (e as nossas, por tabela) e deixar de causar tantos estragos por aí.
Enquanto nos dirigíamos à casinha de Álvaro, o esconderijo onde eu esperara em vão por meu pai após a fuga, perguntei a “Popeye” por que haviam demorado quatro dias para aparecer, e ele me respondeu que meu pai decidira esperar até que meu tio Roberto conseguisse um lugar para se esconder.
Depois de dar as voltas e mais voltas de costume para garantir que não estávamos sendo seguidos, chegamos ao nosso novo refúgio. Assim que nos viu, meu pai correu para abraçar Manuela, e então me deu um beijo na bochecha e se entregou a um longo abraço em minha mãe, que não pôde conter as lágrimas.
Como sempre, “Popeye” fez uma piada para dissipar a tensão do momento.
– Patroa, fique tranquila que o “dom Perigosinho” – ele chamava meu pai assim de vez em quando – prometeu que não vai mais fazer você chorar.
Enquanto comia, meu pai contou detalhes da fuga e, como bom machista que era, acrescentou que estava incomodado porque o Exército espalhara versões nos meios de comunicação de que teria fugido vestido de mulher. Também nos disse que desejava fazer com que o governo soubesse de suas intenções, e achava que faria isso por intermédio do diretor da RCN Radio, Juan Gossaín. Então, pediu ao “Popeye” que telefonasse para a rádio e dissesse que Pablo Escobar queria falar com o famoso jornalista.
Passados vários minutos, por volta das onze horas da noite, meu pai estava em contato com Gossaín, que mencionou que justo naquele instante se encontrava reunido com seus colegas María Isabel Rueda, diretora do noticiário de televisão qap, e Enrique Santos Calderón, codiretor do jornal El Tiempo.
Com os cotovelos apoiados sobre a mesa de bilhar, meu pai cumprimentou-os e disse que seu objetivo era refutar a informação falsa divulgada pelo Exército sobre sua fuga de La Catedral. Referiu-se concretamente à versão da Quarta Brigada de que teria se vestido de mulher no dia da fuga, que qualificou de inadmissível.
Após escutar suas queixas, a conversa com Gossaín se desdobrou em uma espécie de sessão de perguntas, em que intervinham os outros dois jornalistas, interessados em saber se estava disposto a tentar uma nova negociação com o governo e o Ministério Público para se entregar outra vez. Respondeu que sim, mas com várias condições, como a garantia de que não seria transferido, que seria levado a qualquer prisão em Antioquia e que o governo deixasse a polícia totalmente de fora do processo.
Os jornalistas perguntaram se ele concordava que suas demandas fossem transmitidas ao governo, e meu pai disse que sim. Daquele momento até depois das quatro horas da madrugada se comunicaram diversas vezes, mas não houve fumaça branca, e tampouco haveria nos meses seguintes.
Meu pai e eu passamos diversas noites acordados, e íamos deitar após as seis horas da manhã; ele continuava fiel à regra de toda a sua vida: a polícia jamais faria uma operação de busca depois desse horário.
Numa dessas noites, enquanto olhávamos Medellín da casinha de Álvaro, meu pai falou com “Popeye” sobre os tempos difíceis que teriam pela frente se tivessem que ficar escondidos por muito tempo. Já haviam feito isso anos antes, mas agora seria diferente.
Os planos e as estratégias de meu pai para permanecer escondido incluíam “Popeye”, claro, mas naquela noite percebi que o capanga estava muito incomodado, e seus gestos revelavam que não lhe agradava muito a ideia de passar por aquilo de novo.
Não me enganei, pois de um momento para o outro “Popeye” ficou corado e disparou:
– Patrão, fico com muita pena da sua situação, mas não aguento outro “canazo” (temporada escondido). Você sabe que enlouqueço aqui dentro. Não vou acompanhá-lo dessa vez – disse, de forma atropelada, com o olhar baixo, desviando-se do silêncio e do olhar de seu patrão. – Hahaha... Mas veja se não me mata depois dessa, patrão, haha – prosseguiu “Popeye” com a voz trêmula, pálido e com os pés inquietos, como se quisesse fugir assim que possível.
– Não, tudo bem, meu irmão, entendo que o esconderijo é muito deprimente. Você já passou por isso uma vez. Eu, como não tenho opção, vou ter que fazer de novo. Mas só preciso que você tenha paciência por uns diazinhos, até eu me organizar bem e conseguir alguém para ficar comigo, trocar de esconderijo e de carros. E, aí sim, você pode ir embora tranquilo.
– Ah, pode deixar, patrão. Conte com isso. Muito obrigado. Quero sair do país “enchapado” (com identidade falsa) por uns tempos, esperar a maré baixar um pouco, e então volto a ficar à sua disposição, patrão. Para o que der e vier.
Meu pai não disse mais nada e foi falar a sós com minha mãe. Interrompeu a conversa de propósito. Minutos depois, fui ao quarto deles.
– Pai, ouviu aquilo? Que história é essa do “Popeye”? Você não acha muito ruim ele abandoná-lo desse jeito, assim, sem motivo?
– Não, meu filho, não tem problema. Tenho que tratá-lo bem para que vá embora de cabeça fria. Se não matarem ele por aí na rua, vai acabar se entregando logo logo.
Meu pai encontrou um substituto para “Popeye” quando ainda estávamos escondidos na casinha de Álvaro: o “Angelito”.
Enquanto isso, nas ruas de Medellín, o recém-criado Bloco de Busca, cujo objetivo era localizar meu pai, realizou milhares de operações de busca em residências. A perseguição incluía os homens de meu pai, que começaram a correr de um esconderijo para o outro. Com o passar dos dias, muitos deles perceberam que o único lugar seguro era a prisão.
De modo que, como meu pai havia previsto, a debandada começou e “Popeye” e “Otto” se entregaram novamente à Justiça. Meu tio Roberto também fez isso, mas antes contou a meu pai, que concordou.
A caçada se tornou ainda mais intensa, e entre Outubro e Novembro meu pai perderia outros dois de seus pistoleiros e guarda-costas: “Tyson” e “Palomo”. Os meios de comunicação especularam que meu pai teria ficado sozinho, mas estavam enganados, porque ainda dispunha de dezenas de capangas dispostos a qualquer coisa por um bom dinheiro. Dias depois, ele demonstraria bem isso.
Naquele esconderijo, comemoramos o aniversário de 43 anos de meu pai. Jantar, bolo e uma longa conversa compuseram a discreta celebração, que não foi tranquila como em outros tempos. Ficaram para trás as demonstrações de segurança, as caravanas de carros, as dezenas de homens armados até os dentes e a família inteira reunida.
Ainda que o esconderijo fosse seguro, vimos a necessidade de fazer turnos para vigiar os arredores. A cada quatro horas, Álvaro (o caseiro), “Angelito”, meu pai e eu fazíamos rondas.
No dia 3 de Dezembro, um carro-bomba explodiu nas imediações do estádio Atanasio Girardot, matando vários policiais que passavam por ali a bordo de uma viatura. Ficou claro que meu pai havia decidido revigorar sua guerra contra o Estado – convencido, como antes de se entregar à Justiça, de que obteria os benefícios carcerários que tantas vezes exigira.
Outra dezena de carros explodiu nas semanas seguintes em Medellín, e o plano “pistola” contra os agentes secretos da polícia deixaria cerca de sessenta mortos em dois meses.
Em meio a um ambiente de tensão e pessimismo, chegou o 7 de Setembro, o “dia das velinhas” – data comemorada por toda a família havia anos. À noite, nos reunimos no pátio de trás da casa e levamos as únicas cinco velinhas que conseguimos juntar. “Angelito” preferiu se recolher em seu quarto, embora minha mãe o tivesse convidado. Álvaro ficou vigiando dos arredores.
Então nos reunimos em volta de uma pequena estátua de uma Virgem, muito próxima ao varal. Minha mãe começou a rezar em voz alta, e meu pai e eu acompanhamos a oração de cabeça baixa, enquanto Manuela dava voltas pelo pátio, brincando. Mais tarde, apagamos as cinco velinhas: uma para a Virgem e as outras para cada um de nós. Nesse momento, percebi um raro silêncio em meu pai, algo como uma mistura de fé e incerteza, embora não fosse um silêncio atípico dele, pois sempre foi muito difícil entender suas crenças religiosas. Lembro que perguntei apenas uma vez se acreditava em Deus.
– Deus é algo muito íntimo de cada pessoa – respondeu, sem titubear.
Em certa ocasião, minha avó Hermilda me contou que, desde pequeno, Pablo se metia debaixo das cobertas para rezar, pois não gostava de ser visto. Então entendi o que ele estava fazendo nas vezes em que eu me aproximava e tirava suas cobertas para acordá-lo, mas o encontrava já com os olhos abertos e as mãos cruzadas sobre o peito. Estava rezando.
O isolamento da família e os rumores cada vez mais preocupantes de que meus parentes maternos seriam atacados forçaram meu pai a propor que nos separássemos por um tempo. Aceitamos a contragosto, e minha mãe, Manuela e eu fomos para o edifício Altos, enquanto meu pai foi para um esconderijo cuja localização não quis nos informar.
– Diga para os seus irmãos e irmãs mudarem de casa ou saírem do país, porque a situação vai ficar cada vez mais perigosa para eles – instruiu meu pai antes de se despedir de minha mãe.
Mais uma vez meu pai estava certo. E comprovaríamos isso na noite de 18 de Dezembro, após celebrarmos a Novena de Aguinaldos no salão de festas do edifício Altos. Era a festa de fim de ano da família Henao, e minha mãe convidara a todos para a reza e para o jantar, e compareceram elegantemente vestidos.
De repente, um dos guarda-costas advertiu que a Elite, como chamávamos a polícia do Bloco de Busca, havia chegado. Tentei escapar e me dirigi até a parte de trás, pelo caminho que conduzia ao edifício vizinho, mas deparei com vários policiais que apontaram seus fuzis para mim. A Novena de Aguinaldos foi suspensa. Homens, mulheres e crianças – umas trinta – foram separados em grupos. Após uma detalhada revista, pediram nossos documentos, e preferi me identificar.
– Meu nome é Juan Pablo Escobar Henao, tenho quinze anos e meu pai é Pablo Escobar. Meus documentos estão lá em cima, no meu quarto, porque moro neste edifício.
O agente que escutou as minhas palavras chamou imediatamente o seu comandante, um coronel da polícia, e lhe contou quem eu era. O oficial me levou para um canto, chamou dois de seus homens e disse:
– Se ele se mexer ou piscar, vocês atiram.
Então passou um rádio para os que estavam na escola Carlos Holguín (o centro de operações do Bloco de Busca) e disse em voz alta que haviam me capturado e que me levariam para ser interrogado.
Por sorte, haviam comparecido à celebração a esposa e um dos filhos do ex-governador de Antioquia, Álvaro Villegas Moreno, que moravam no mesmo edifício.
Ele foi informado do que estava acontecendo e não teve dúvidas: desceu de pijama e pantufas para falar com o coronel e verificar se a operação atendia às normas legais. Àquela altura, já haviam se passado duas horas, e os mais de cem convidados da Novena de Aguinaldos continuavam de pé sob o olhar vigilante dos membros da Elite da polícia.
A presença do político acalmou os pais e adultos, que se queixaram do tratamento dispensado pela polícia a seus filhos e exigiram que ao menos os deixassem comer. Os policiais concordaram.
Com os homens, não houve concessões, e ninguém se importou com o fato de eu ter quinze anos.
– Amanhã vão aparecer os amiguinhos com quem você passeou uns dias atrás – me disse o oficial, mas não entendi a quem se referia.
– Venha comigo, me siga – me disse, aos gritos.
– Aonde você está me levando, coronel?
– Não fique perguntando, não vou informar nada. Só me siga, ou vou ter que levar você à força. Vamos, ande.
Em seguida, os dois policiais que estavam apontando as armas para mim encostaram os canos de seus fuzis na minha barriga, dando um sinal para que eu andasse. Jamais esquecerei do olhar de angústia de minha mãe e de meus parentes, pois qualquer coisa podia acontecer comigo.
Fomos até o corredor principal do edifício e o coronel, que caminhava à nossa frente, pediu que eu parasse ali. Naquele momento chegaram ao menos trinta homens encapuzados e apontaram seus fuzis em minha direção. Achei que seria fuzilado.
– Dois passos para a frente! Vire para a direita, agora para a esquerda, agora de costas, diga seu nome e sobrenome em voz alta… mais forte! – ordenava um dos encapuzados, de voz rouca e baixa estatura. Então me levaram para um canto, e o encapuzado de voz rouca repetiu o interrogatório com cada um dos homens que haviam comparecido à celebração. Apenas duas mulheres foram submetidas ao mesmo procedimento: minha mãe e Manuela.
Alguns minutos depois, o coronel deu ordens para que eu fosse levado à escola Carlos Holguín. Perguntei o motivo pelo qual estavam me detendo, visto que não haviam encontrado nada de ilícito, e ele respondeu simplesmente que na sede do Bloco de Busca fariam uma festinha com “o filho do Pablo”.
Às três horas da manhã, estavam me levando a um veículo da Elite quando apareceu um delegado da Procuradoria que desautorizou a captura de um menor de idade e pediu que tirassem as algemas de mim.
A chegada do funcionário foi providencial, pois após uma discussão aos gritos com o comandante da operação, a Elite foi embora do edifício. Eram sete horas da manhã do dia 19 de Dezembro. Os policiais haviam ido embora, mas minha mãe, Manuela e eu ficamos aterrorizados. Éramos o objetivo principal dos inimigos de meu pai.
Três dias depois, em 21 de Dezembro, um guarda-costas do meu pai chegou ao Altos para perguntar como estávamos e nos contou algo incrível: meu pai havia realizado pessoalmente diversas ações militares com o propósito duplo de demonstrar que não estava derrotado e de dar ânimo aos homens que ainda faziam parte de seu aparato militar.
Segundo seu relato, meu pai se pôs à frente de cinquenta homens e instalou duas blitzes na estrada de Las Palmas com o objetivo de atrair o Bloco de Busca e explodir seus caminhões com veículos repletos de dinamite posicionados nas duas laterais da via. Meu pai e seus pistoleiros usavam braçadeiras do DAS e pararam dezenas de carros que vinham do aeroporto José María Córdova. Após revisar os documentos, deixavam os viajantes passar.
Naquela ocasião, também soubemos que fora meu pai quem encabeçara um grupo armado que explodiu uma casa que o capitão Fernando Posada Hoyos, chefe da inteligência da polícia em Medellín, utilizava como fachada para desenvolver operações contra ele.
A caravana de veículos rodeou a habitação – continuou o relato do segurança – no bairro de Las Acacias, e um dos homens de meu pai pôs uma poderosa carga de dinamite na frente do quarto onde o oficial dormia. Após a explosão, procuraram-no entre os escombros para matá-lo de vez.
Em 23 de Dezembro, meu pai nos convidou para passar o Natal e o Ano-Novo com ele. Chegamos a uma propriedade em Belén e nos hospedamos no que parecia ser a residência do caseiro. Meu pai mandou trazer pólvora, soltamos balões com Manuela, e minha mãe preparou bolinhos e natilla numa fogueira improvisada. Passamos ali os dias 24 e 31 de Dezembro, acompanhados por uma família e por “Angelito”.
Passávamos horas na varanda da casa de campo erguida à beira de um barranco. Logo reparei que abaixo de nós havia uma terra remexida, e perguntei a meu pai o que havia ali. Ele não conseguiu conter uma risada maliciosa, mas se esquivou da resposta. Depois, escutei-o pedindo a “Angelito” que levasse os explosivos para algum lugar mais seguro.
O início de 1993, o último ano de vida de meu pai, seria muito azarado e repleto de episódios intensos. E muito violento. Depois de passarmos o Ano-Novo com ele, viajamos a um belo sítio que minha mãe havia me dado de presente, no município de San Jerónimo, a duas horas de Medellín, em direção ao oeste. Minha mãe reformara tudo, e foi doloroso dizer a meu pai que ele não poderia ir, pois o lugar não era seguro.
Dali, soubemos pelo noticiário que meu pai havia dado início a uma estratégia que já havia mencionado algumas vezes: ser tratado como criminoso político, uma ideia que rondava sua cabeça de tempos em tempos devido a sua intensa relação com o M-19. Assim, expediu um comunicado dirigido ao promotor De Greiff, em que anunciava a criação do grupo armado Antioquia Rebelde e denunciava atropelamentos, assassinatos e torturas do Bloco de Busca. Dizia ainda que, diante das detenções e operações de busca nos escritórios de seus advogados, “não resta outra alternativa senão descartar a batalha jurídica e empreender uma luta armada e organizada”.
Enquanto a proposta era objeto de debate nos meios de comunicação, pouco tempo depois do meio-dia chegaram de surpresa minha tia Luz María e Martha Ligia, uma velha amiga da família e esposa de um conhecido narcotraficante da cidade.
Inconsolável, Luz María contou que estava conversando com sua amiga ao meio-dia em sua loja, El Vivero, quando Carlos Castaño chegou armado até os dentes e cercado por vinte homens em diversas caminhonetes. A intenção do paramilitar era sequestrá-la, mas se deteve, surpreso, ao perceber a presença de Martha Ligia, e não teve outra opção a não ser cumprimentá-la e mudar de rumo. Segundo minha tia, em meio ao pânico pelo que acabara de ocorrer, perceberam uma coluna de fumaça saindo de um lugar não muito longe dali. Era sua casa, no bairro de El Diamante, mas naquele instante ela ainda não sabia disso, pois haviam partido apavoradas rumo a San Jerónimo, onde estávamos.
Naquela tarde, minha tia e seus dois filhos pequenos ficaram sem teto e sem trabalho porque, além de terem abandonado a El Vivero, sua casa foi consumida pelas chamas.
Antes de pôr fogo na residência, os homens de Castaño retiraram dali uma das obras de arte mais valiosas de minha mãe: a pintura Rock and Roll, do gênio espanhol Salvador Dalí. O óleo sobre tela não era grande, mas seu valor sim. Era a mesma obra que Castaño ofereceu para devolver a minha mãe após a morte de meu pai, quando buscávamos a paz com os cartéis do narcotráfico.
Em meio às ruínas da casa de minha tia Luz María ficaram os restos de obras de arte que não sobreviveram ao incêndio: uma pintura inestimável de Claudio Bravo e esculturas dos mestres Igor Mitoraj, Botero, Édgar Negret, que foram consumidas pelo fogo.
– Não pude salvar nem minhas calcinhas, filho – resumiu sua tragédia enquanto eu tentava acalmá-la, em vão.
– Tomem muito cuidado, porque esse homem é capaz de qualquer coisa – sentenciou Martha Ligia, referindo-se a Carlos Castaño, ao se despedir de nós para retornar a Medellín.
Naquele dia, pela primeira vez os inimigos de meu pai se meteram com sua família. O futuro era mais do que sombrio.
Mas seu aparato militar também havia sofrido um baque com as mortes de Juan Carlos Ospina, “Enchufe” e Víctor Granada, o “Zarco”.
A guerra ganhava força, e em resposta meu pai mandou detonar dois carros-bomba em três partes diferentes de Bogotá. Os atentados atrozes acabariam desencadeando a articulação pública de um grupo que seria letal para meu pai: os Pepes.
Eles estrearam com dois ataques que claramente tinham o objetivo de avisá-lo de que, a partir daquele momento, sua família seria o objetivo deles. Em 31 de Janeiro, dinamitaram a casa de campo de minha avó Hermilda, no município de El Peñol, e ativaram carros-bomba nas entradas dos edifícios Abedules e Altos, onde boa parte das famílias Escobar Gaviria e Escobar Henao morava.
Os atentados nos colocaram para correr outra vez, e meu pai foi atrás de um novo refúgio para nós. E encontrou um rapidamente, pois “Angelito” nos levou a um apartamento na avenida La Playa, a poucas quadras da avenida Oriental, na região central de Medellín.
Meu pai estava lá, e sem maiores explicações falou pela primeira vez da necessidade de sair do país e escapar da onda de violência que se aproximava a passos largos. Cogitou a possibilidade de que eu viajasse para os Estados Unidos com Manuela, Marta (a esposa de meu tio Fernando) e suas duas filhas. Ah, e Copito e Algodona, o casal de cães french poodle de Manuela, que se recusava a deixá-los para trás. Então disse que eu poderia levar minha namorada junto, mas deixou claro que antes devíamos falar com ela e com sua família.
– Amanhã à noite você faz uma visita a Andrea para sondá-la e depois falamos aqui com ela. Tenha muito cuidado para não ser seguido – instruiu meu pai.
Acompanhado de “Angelito”, fui rapidamente para a casa de Andrea sem avisar. Pela primeira vez, cheguei lá apenas com um guarda-costas e um automóvel Mazda que ela não conhecia. Ela não achou estranho quando eu disse que meu pai queria falar com ela, e ao retornarmos ao esconderijo, pedi que mantivesse os olhos fechados durante todo o trajeto.
– Garota, o que você fez com a minha família? – meu pai a saudou, e Andrea não conseguiu esconder o susto.
– É que nenhum dos meus filhos quer ir para os Estados Unidos se você não for junto – acrescentou, para aliviar a tensão.
– Só quero continuar estudando, pois acabei de começar a faculdade de publicidade – minha namorada respondeu.
Como não havia espaço para maiores debates ou demoras, naquela mesma noite fui com minha mãe para falarmos com Trinidad, a mãe de Andrea, e após vinte minutos de conversa minha sogra não fez objeções à viagem.
Só lhe disse em privado uma frase premonitória ao se despedir:
– Filha, você vai lá para sofrer.
Na tarde de 18 de Fevereiro, já estava tudo pronto para a viagem a Miami, cujo voo estava marcado para as dez horas da manhã do dia seguinte. Meu pai propôs que saíssemos com cinco horas de antecedência, mas surgiram duas perguntas: se chegássemos muito cedo, onde nos esconderíamos para que não nos vissem? Como chegar ao aeroporto sem sermos vistos?
Para resolver a primeira dúvida, decidimos enviar imediatamente o Mazda que ninguém conhecia e deixá-lo no estacionamento do aeroporto. Ele ficaria ali até o momento do check-in. Com o envio antecipado do carro, resolvemos outro problema: a bagagem. Telefonamos para um contato de meu pai no aeroporto, que se comprometeu a recebê-la e guardá-la até a nossa chegada.
Responder à segunda questão não foi fácil, pois inegavelmente havia o risco de que os Pepes nos seguissem e algo acontecesse na estrada, mesmo que fôssemos escoltados.
Então, optamos por uma alternativa que deu certo: Andrea e eu pegamos um táxi na rua e fomos à parte traseira do hotel Nutibara, no centro da cidade, e entramos num ônibus que realiza o percurso até o aeroporto em uma hora pela autoestrada Medellín-Bogotá. Manuela, suas duas primas e Marta saíram mais tarde com dois seguranças.
Fizemos isso e, embora não houvesse muitos passageiros, a viagem foi problemática, pois o motorista acelerava fundo e não parecia preocupado com a sua vida, tampouco com a dos indefesos na parte de trás do veículo. Fiquei com raiva por não poder reclamar nem dizer nada para lhe chamar a atenção. Atrás do ônibus, a uma distância prudente, éramos seguidos por “Nariz” e pelo “Japonês”.
Como havíamos previsto, chegamos com bastante antecedência e fomos diretamente ao veículo estacionado ali desde o dia anterior.
Como precaução adicional, entreguei ao “Japonês” uma lista com os nomes e telefones diretos da Procuradoria Regional, dos meios de comunicação locais e nacionais e os números particulares de vários jornalistas conhecidos. O guarda-costas começaria a dar telefonemas caso as coisas saíssem de controle. Combinamos que ele me vigiaria o tempo todo, atento a qualquer sinal. Aquele era nosso plano B.
Fechei os olhos por um tempo, mas não consegui dormir, com medo de perder o horário se pegasse no sono. Cerca de três horas se passaram conosco ali, até que chegou o momento de entrar no aeroporto. Esfregamos os olhos, nos espreguiçamos e saímos do carro. Me senti inseguro naquele instante.
– Isso não está nada bom, nada bom! – eu repetia a Andrea, que me olhava sem entender o que eu dizia. Afinal, para ela, que não havia crescido em um ambiente de medo, aquela era uma manhã qualquer no aeroporto de Rionegro.
Eu não estava imaginando coisas. Vi movimentos estranhos, pessoas que claramente não estavam esperando nenhum familiar, nem vestidas para a ocasião. Uma caminhonete Chevrolet Luv branca de cabine dupla, que meu pai mencionou certa vez como sendo um veículo vinculado aos Pepes, estava estacionada em local proibido e de frente para dois policiais do aeroporto.
– Amor, vamos entrar de uma vez porque não estou gostando das pessoas que estou vendo. Se conseguirmos passar pela imigração, estaremos em um lugar mais seguro; é melhor a gente se apressar – eu disse a Andrea.
Quase passando por cima das pessoas que estavam na fila, que começaram a reclamar, entramos no primeiro posto de controle. O funcionário do DAS conferiu o passaporte página por página, observou detalhadamente a minha assinatura e a digital, olhou diversas vezes o visto de turista para os Estados Unidos e a permissão de saída do país assinada e autenticada dias antes por meu pai, que tinha a firma reconhecida em cartório.
O funcionário da imigração me olhava com evidente desprezo. Queria encontrar um motivo para não me deixar passar, mas não achou. Então, rangeu os dentes e carimbou as folhas de ambos os passaportes.
Fora do embarque internacional, no corredor público do aeroporto, vi por detrás do vidro levemente escurecido homens vestidos de civis encapuzados e armados com fuzis e metralhadoras, que patrulhavam o corredor em grupos de seis, como se fossem a própria segurança dali. Contei mais ou menos vinte encapuzados. Os viajantes e os funcionários das companhias aéreas, das cafeterias e até da limpeza se entreolhavam, desnorteados. Ninguém sabia quem eram eles, nem por que estavam ali. Não tinham identificação oficial, e nenhuma autoridade se aproximava deles. Reinava um silêncio sepulcral no aeroporto.
Com todos os papéis nos conformes, passamos pelo detector de metais, pelo raios X, pelos cães, pelos policiais, por tudo. Minha irmã e as primas com sua mãe estavam na fila. Elas demoraram, mas todas passaram, o que me deixou muito mais tranquilo.
Porém, quase no instante em que chegaram, vi vários homens da Elite da polícia, e atrás deles jovens que traziam todas as nossas malas, e começaram a abri-las ao mesmo tempo.
– Não, não, não, um minutinho, um minutinho. Façam o favor de esperar, porque vocês não vão abrir as malas da minha família desse jeito. Permito com muito prazer revistarem as malas, mas uma de cada vez e na minha frente. Respondo pessoalmente pelo conteúdo de cada uma, mas façam isso rápido para não perdermos o voo – eu disse, apreensivo.
Nesse momento, uma multidão de passageiros nos observava. Demoraram deliberadamente uma eternidade para revistar as malas, que já haviam passado por esse processo mais de uma vez. Dava para ver que a intenção era nos atrasar para que perdêssemos o voo.
Percebi que coisas muito graves poderiam ocorrer, e por isso comecei a fingir que estava com coceira em uma orelha, enquanto procurava o “Japonês” em meio à multidão aglomerada atrás do vidro: queria fazer para ele o sinal de ativação do plano B. Consegui vê-lo e alterei levemente o movimento dos dedos, imitando a forma de um telefone. Ele entendeu a mensagem e saiu.
Um policial me viu fazer o gesto e imediatamente começou a procurar em meio à multidão, tentando identificar a pessoa com quem eu me comunicara por sinais. Graças a Deus, não conseguiu, e me perguntou, furioso:
– Com que filho da puta você estava falando?
– Com ninguém, só estava coçando a orelha – menti, sem muito sucesso.
Então discuti aos gritos com os policiais, dizendo que era um absurdo aquilo que estavam fazendo conosco e que precisávamos embarcar no avião. Mostrei meu passaporte com o selo de saída e o visto em dia. O oficial apenas disse que estavam apenas fazendo procedimentos de rotina. Mas eles conseguiram: o avião partiu sem nós, e não havia outros voos mais tarde. Naquele momento, vi-me completamente sozinho, responsável pela segurança e pela vida de três jovenzinhas e de uma mulher adulta.
Alguns minutos depois, chegou o chefe de polícia do aeroporto.
– Bom, bom, preciso que vocês desocupem logo esse espaço, pois já perderam o voo. Preciso que saiam daqui de uma vez.
– Sinto muito, senhor, mas não vamos sair daqui. Vocês nos fizeram perder o voo de propósito, e lá fora os Pepes estão prontos para nos sequestrar. O senhor consegue enxergar bem daqui, não é? – Apontei para eles com o dedo. – Você quer que a gente saia para nos matarem? Sinto muito mesmo, senhor, mas sou o responsável pela nossa segurança e pelas nossas vidas, e você vai responder junto ao meu pai por tudo que acontecer com a gente de agora em diante.
A confusão era total. Até que de repente chegaram diversos jornalistas. Foi um alívio ver as luzes das câmeras de televisão e os flashes atravessando aquele vidro escurecido. A chegada dos repórteres espantou os encapuzados, que desapareceram pelo corredor principal. Mas isso não significava que haviam partido.
Em meio à confusão, a Virgem apareceu para mim: um senhor de uns cinquenta anos que eu nunca havia visto, que trabalhava numa companhia aérea local e se chamava Dionisio:
– Senhor, sei que está com problemas. Conte comigo no que eu puder oferecer minha humilde ajuda.
Pensei por um momento, e tive a ideia de pedir em voz baixa que me ajudasse a conseguir uma sala ali dentro, com telefone e uma lista telefônica.
– Pode deixar, vou buscar as chaves e quando fizer um sinal no final do corredor, diga à polícia que vai ao banheiro do fundo. De qualquer forma, eles sabem que você não vai sair daqui.
E assim fizemos. O bom homem cumpriu com sua palavra, e de uma hora para a outra eu estava lá sem saber o que fazer. Havíamos planejado cuidadosamente como entrar no aeroporto, mas não como escapar de lá.
A primeira coisa que fiz foi procurar o nome da Aeroes, uma companhia aérea de meu pai, mas não encontrei. Eu tinha a esperança de encontrar ali algum nome ou número para pedir ajuda. “Mandem um helicóptero do meu pai, não tem problema se for gravado pelas câmeras e que depois seja apreendido... estamos salvando nossas vidas”, pensei.
Quase atirando a toalha, vi pela janela que estava aterrissando um helicóptero da empresa Helicol.
– Para quem é esse helicóptero, esse de que o piloto está descendo? Preciso dele – eu disse a Dionisio.
– Não, senhor, é para uns executivos que estão esperando já faz um tempo, e já têm plano de voo. Impossível.
Imediatamente, peguei as páginas amarelas, disquei o número da Helicol e pedi a Dionisio que solicitasse em seu nome o serviço de um helicóptero. Ficaram de enviar um veículo assim que algum estivesse disponível.
A chegada do helicóptero era iminente, e nos dirigimos à porta de saída da plataforma onde estavam os heliportos, porém os guardas nos impediram. A situação podia se complicar outra vez, mas naquele momento chegou o delegado da Procuradoria, para quem o “Japonês” telefonara. Assim, não tiveram opção e nos deixaram sair.
A espera pelo helicóptero pareceu eterna. Já na plataforma, tivemos de abandonar a bagagem porque era muito pesada. Enquanto organizávamos a melhor maneira de subir na aeronave, chegou um coronel, que claramente era do Bloco de Busca.
– Estamos atrás do filho da puta do seu pai, para matá-lo.
– Desejo boa sorte, coronel.
– Na próxima vez vocês não vão escapar desse jeito. E na próxima vez que eu ver você ou seu pai, vou matar qualquer um dos dois – replicou o policial. Ele fechou o punho de raiva e percebi sua intenção de me dar um soco. Mas desistiu quando olhou ao redor e viu diversas câmeras atrás das grades de segurança da plataforma.
O oficial partiu e eu, Manuela, Nubia, Andrea, Catalina, Marcela e Marta subimos no helicóptero com destino ao aeroporto Olaya Herrera, em Medellín. E com Copito e Algodona, claro. Lá, éramos esperados por um funcionário da Procuradoria, cujo táxi eu tive de pagar porque ele não tinha dinheiro. Alguns instantes depois chegou um jornalista do canal regional Teleantioquia.
Pedi a todos que me esperassem e entrei em uma sala para pensar no que fazer, pois os ponteiros do relógio estavam girando e era previsível que os Pepes viriam atrás de nós. Então, pensei num plano.
– Vejam bem, meus irmãos, a situação é a seguinte: iam nos matar no aeroporto, e acabo de escapar com a minha família. Prometo que dou uma entrevista exclusiva, mas preciso da ajuda de vocês.
– Diga o que você precisa – responderam.
– Vamos até um lugar e vocês nos seguem com seu carro, mas não podem parar de filmar durante todo o tempo, para o caso de acontecer algo conosco.
Eles aceitaram, e nos dirigimos ao edifício Altos com toda a pressa. Aquilo parecia uma loucura, pois o edifício acabara de ser alvo de um atentado, e os Pepes sabiam que lá éramos presas fáceis. Mas eu sabia o que estava fazendo. Precisava levá-los a um território que eu conhecia com perfeição.
Quando chegamos ao primeiro subsolo do edifício, dei setecentos dólares de gorjeta ao taxista por ter “voado” desde o aeroporto. Antes de pôr o plano em ação, conversei com o repórter e concedi a primeira entrevista de minha vida: falei sobre o que havia acontecido e sobre as possibilidades de meu pai se entregar. Finalmente, respondi o que pude e saí correndo para as escadas que levavam à piscina do edifício. Por uma de suas extremidades passava um pequeno rio, e havíamos deixado por lá uma passagem a fim de escapar para o jardim do edifício vizinho, onde tínhamos um apartamento e mantínhamos sempre no estacionamento um veículo com a chave na ignição e o tanque cheio.
Minha irmã e as primas já haviam atravessado e estavam me esperado ao lado de uma caminhonete Mitsubishi. Essa foi nossa rota de fuga. Segundo me contaram, pouco depois, cinco caminhonetes cheias de homens encapuzados invadiram o edifício e o reviraram de cima a baixo à nossa procura. Nesse momento, já estávamos no Cero Cero, o edifício Ceiba del Castillo, onde vestimos roupas limpas para correr outra vez, pois sabíamos que os Pepes já o haviam localizado.
Descemos ao subsolo e trocamos novamente de carro, dessa vez por um Renault 4, e nos dirigimos ao apartamento da avenida La Playa, o mesmo de onde havíamos partido para o aeroporto naquela madrugada. Ali encontramos minha mãe, que chorava inconsolavelmente, pois os repórteres do rádio haviam anunciado nossa viagem abortada para os Estados Unidos.
Após um abraço apertado, eu disse que o apartamento não me parecia seguro, pois Copito e Algodona haviam aparecido na televisão, e era questão de minutos até que os vizinhos avisassem a polícia de que ali vivia a família de Pablo. Assim que terminei de falar, tocou a campainha. Era “Angelito”:
– Olá, o patrão mandou eu vir buscar vocês; temos que nos mexer, porque esse esconderijo não é mais seguro. Juancho, o patrão disse para a gente pegar o dinheiro do esconderijo, porque esse apartamento já era.
– Feito, me ajude aqui, precisamos de uma chave de fenda para abrir o móvel onde fica o dinheiro – respondi, apontando para o vidro que o ocultava.
Forçamos o móvel por diversos minutos sem conseguir abri-lo. Os parafusos estavam presos.
– “Ramón” – também chamávamos “Angelito” assim –, o jeito vai ser abrir na base da força.
– Mas e o barulho que vai fazer, não tem problema?
– Problema seria deixar esse dinheiro aí ou perder tempo abrindo com jeitinho. Quando os vizinhos reclamarem, a gente já vai estar de saída, e eles nunca mais nos verão.
Depois de chutar o móvel repetidas vezes sem sucesso, embora fazendo muito barulho, trouxemos um martelo enorme da cozinha, e com ele conseguimos penetrar a madeira. O barulho era enorme. A cada golpe, sentíamos que a polícia chegaria a qualquer instante.
Finalmente, enfiamos o dinheiro em uma maleta e fugimos dali. Naquela mesma tarde, houve uma operação de busca no apartamento de La Playa. Estavam em nossos calcanhares.
Fechamos os olhos durante o trajeto, e “Angelito” deu várias voltas antes de chegar a outro esconderijo próximo, uma casa que pelas minhas contas devia ficar próxima ao teatro Pablo Tobón Uribe da cidade.
Depois que a grande porta da garagem foi fechada e pudemos abrir os olhos, vimos meu pai.
Manuela desceu do carro e beijou sua bochecha, e minha mãe os envolveu em um abraço. Desci junto com “Angelito” e Andrea para ajudar a carregar a pouca bagagem que tínhamos conosco.
– Oi, pai, achei que não ia ver você de novo tão cedo. Que bom ter chegado, você não imagina o aperto que a gente passou. Foi um milagre ter escapado – comentei, enquanto o abraçava e beijava.
– Fica tranquilo, meu filho, o importante é que todos estão bem e aqui comigo. Vi um pouco na televisão e escutamos pelo rádio. Você mandou muito bem com a ideia do helicóptero, surpreendeu todo mundo aqui. – Meu pai sorriu, dando-me tapinhas no ombro.
Eu e Andrea passamos a noite no quarto que nos deram, que tinha apenas uma cama de solteiro. Não havia outros colchões. Assim, aprendemos a dormir juntos numa cama para uma só pessoa. Desde esse dia dormimos assim, colados um no outro. Rezava muito antes de dormir, pois isso me dava paz e tranquilidade para pegar no sono. Deixava meus medos nas mãos de Deus.
Após as seis horas da tarde de 20 de Fevereiro de 1993, um Sábado, ligamos a televisão em uma salinha da casa. Assistíamos à rede Univisión na tv a cabo quando informaram que nossos vistos haviam sido cancelados pelo embaixador dos Estados Unidos, Morris Busby.
– Fiquem tranquilos que o mundo é muito grande. Tem a Europa, a Ásia... A Austrália seria um bom lugar para vocês irem. Deixem comigo, vocês vão ver que arranjo uns vistos. Ou vocês vão ilegalmente e depois eu vou para lá, arranjo algum barco e resolvo a questão – meu pai sonhava em voz alta, para melhorar o ânimo da família.
Após um curto silêncio, apresentou outra opção:
– Ou temos outra alternativa... Nos escondermos juntos, vocês ficam comigo e a gente se enfia na selva por uns tempos. Agora, com o apoio dos “elenos” – o grupo guerrilheiro ELN –, vou voltar a ter muito poder.
A conversa ficou no ar. Minha mãe permanecia em seu quarto, chorando na cama. Estava disposta a acompanhar meu pai, mas sem expor outra vez a vida dos filhos. A selva não lhe parecia uma opção viável.
Durante toda aquela semana, minha mãe, Andrea e eu usamos as roupas de meu pai, pois não tínhamos nada à disposição.
– Cuidado para não confundirem vocês comigo por aí – brincava meu pai ao nos ver com seus trajes.
Assim, vestindo roupas que não eram nossas, comemoramos em 24 de Fevereiro meu aniversário de dezesseis anos. Não houve fotos nem vídeos, apenas uma sobremesa caseira. Não era em nada comparável à minha festa de quinze anos no Altos, com mais de cento e vinte convidados, três orquestras, bufê, convidados de smoking, piscina com ilha artificial e muitos outros esbanjamentos.
No dia seguinte, o jornal das sete traria outra notícia muito ruim para meu pai: naquele dia, sem nenhum aviso prévio, Giovanni Lopera, “a Modelo”, entregara-se à Justiça em Antioquia. Meu pai ficou sem palavras, pois acabara de perder ninguém menos que o sucessor de “Pinina”.
Nas horas seguintes, os Pepes atacariam duramente as pessoas que, tempos antes, haviam sido próximas de meu pai em termos jurídicos ou políticos: em 27 de Fevereiro, foi destruída a fazenda Corona, propriedade de Diego Londoño White; no dia 1º de março, assassinaram seu irmão, Luis Guillermo; em 2 de Março, assassinaram Hernán Darío Henao, o “HH”, administrador da fazenda Nápoles, que as autoridades e meios de comunicação associaram à família de minha mãe. A verdade é que não tinham qualquer parentesco. E em 4 de Março assassinaram o advogado de meu pai, Raúl Zapata Vergara.
Pelas notícias também ficamos sabendo da morte de “Chopo”, e então entendemos que haviam dado em meu pai o golpe final. O ato ocorreu em seu apartamento no edifício do Banco Comercial Antioqueño, em pleno centro de Medellín, local onde “Chopo” e meu pai haviam se reunido alguns dias antes.
Quando deram a notícia, meu pai já sabia como “Chopo” havia morrido.
– Foi “Juan Caca” que entregou o “Chopo”. A polícia pegou o Juan e o torturou, por isso acabou entregando a chave do apartamento para eles. Por isso foi tão fácil pegar o “Chopo”: ele estava dormindo tranquilamente, achando que “Juan Caca” não entregaria seu paradeiro. Sem dúvida foi um erro que lhe custou a vida – contou meu pai, enquanto o noticiário apresentava imagens do apartamento de um dos poucos bandidos fiéis a ele, dos poucos que o chamavam por seu primeiro nome, que não o abandonou e não se entregou à polícia. “Chopo” era um homem corajoso, que gostava de desafiar a lei.
– Pai, o que vai fazer agora que não tem mais ninguém lá fora protegendo você? O que vai acontecer de agora em diante? Você ficou praticamente sozinho, sem ninguém lá fora – perguntei, angustiado.
– Vamos ver, meu filho – respondeu, pensativo.
– Pai, não tem ninguém para proteger você. Acho que é melhor a gente se dividir, os homens para um lado e as mulheres para outro, em esconderijos diferentes, para a segurança delas. Se vierem atrás de você em qualquer momento em que elas estiverem junto, imagine o massacre. Precisamos protegê-las, para que não lhes aconteça nada. Eu fico com você, independente do que acontecer – falei, tremendo de medo, e ele me olhou em silêncio.
– Acho que é o melhor por enquanto, até vermos como vamos fazer depois. Nesse momento o “Angelito” vai ser mais útil na rua, lutando, e não pode fazer duas coisas ao mesmo tempo – respondeu, resignado.
Pela primeira vez, meu pai acatava uma sugestão minha. Aceitar que precisava de mim a seu lado para nossa proteção acabou com minhas dúvidas de que estávamos em queda livre. Não havia mais ninguém a quem pedir socorro. O fato de “Angelito” se tornar o elo entre meu pai e o mundo exterior implicava um enorme risco, pois ele precisaria ficar muito tempo fora, e meu pai não teria controle sobre ele.
Assim, “Angelito” se preparou para sair com destino a uma reunião, e meu pai lhe deu três horas para que retornasse. Uma eternidade, naquele contexto em que vivíamos. Ficar em casa esperando por ele era um grande risco, e ir a outro esconderijo e desperdiçá-lo sem uma razão válida também era um risco em si. “Angelito” mal tinha saído quando meu pai perguntou:
– Grégory, quanto tempo você demora para tomar banho? Imagino que você vai levar uma hora, e não posso esperar tanto tempo. Vamos dar uma volta de carro enquanto o “Angelito” não chega. Venha sem tomar banho mesmo, para me fazer companhia. Ou prefere que eu vá sozinho?
– Pai, prometo que em dez minutos vou estar de banho tomado e vestido, e então vamos aonde você quiser. Mas deixe eu tomar um banho para refrescar.
– Então faça isso, ande.
Fiquei pronto em quinze minutos, e entramos no Renault 4 que estava estacionado na garagem. Meu pai vestia uma camisa polo e calça jeans. Sua barba era farta, e ele pôs um gorro escuro.
Segui suas instruções e fechei os olhos. Nossa família ficou para trás, sozinha. Por dentro, eu carregava a angústia de imaginar o que aconteceria se detivessem “Angelito” e o obrigassem a entregar o paradeiro de meu pai. Jamais concordei com sua violência, mas nunca sequer cogitei a possibilidade de deixar meu pai sozinho.
– Mas pai, você acha que é uma boa sairmos daqui e deixarmos as mulheres sozinhas? – perguntei, cheio de incertezas.
– Temos que matar o tempo fora de casa, por segurança. Não se preocupe, só vamos dar uma voltinha pela cidade enquanto esperamos. É melhor ficar em constante movimento. Aviso quando você puder abrir os olhos.
Uma voltinha? Como meu pai era capaz de sair pelas ruas de uma cidade repleta de policiais e blitzes como se nada estivesse acontecendo, sendo que era o homem mais procurado do mundo? Era a opção que oferecia menos riscos.
Até que chegou o momento de abrir os olhos, e a primeira coisa que vi foi a rodoviária de La Milagrosa, lugar por onde eu passava quando ia às aulas no colégio San José de la Salle.
Meu pai dirigiu com tranquilidade, respeitando os semáforos e as placas de trânsito para que parecêssemos apenas mais um carro na multidão. Andar com ele pelos distritos da região nordeste de Medellín era o mesmo que apostar a vida na roleta-russa. Permanecemos assim por cerca de duas horas e meia, até que ele me pediu para fechar os olhos.
Para me manter tranquilo, ele relatava o que via na rua: que estava passando perto do esconderijo, que não via movimentos estranhos, que tudo parecia bem. Então ele disse que daríamos outra volta pelo bairro e voltaríamos para casa. Fizemos isso. “Angelito” já havia chegado, e respirei aliviado.
Doralba, a moça que cuidava da casa, sabia manejar muito bem uma máquina de costura e confeccionava as próprias roupas. O jeans favoritos de meu pai, de tecido fino e da marca New Man, estava chegando ao limite, e por isso Doralba propôs fazer uma calça parecida para que ele deixasse de reserva. Meu pai adorou a idéia.
– Ah, ótima a sua ajuda com o jeans. Deixa eu perguntar uma coisa: você seria capaz de fazer para mim vários uniformes de policial? – perguntou, certamente pensando no plano seguinte.
Alguns dias depois, meu pai nos avisou que, como os policiais estavam concentrados na zona central da cidade, era melhor irmos embora dali. Disse que nos esperaria em outro lugar. A partir daquele momento e ao longo de vários meses, trocaríamos de esconderijo com muita frequência.
“Angelito” levou meu pai e voltou para nos buscar dois dias depois. Ele nos levou a duas casinhas em Belén Aguas Frías, que meu pai já havia batizado de “Tediolândia”. Assim, muito entediados, passamos a Semana Santa sem poder fazer qualquer coisa devido ao risco de sermos descobertos.
Nossa situação era mais do que difícil, e meu pai a deixaria ainda mais complicada em 15 de Abril, quando descobrimos pelo noticiário que ele decidira fazer novos ataques com carros-bomba para forçar o governo a atender suas exigências.
Nesse dia, houve uma explosão na rua 93 com a avenida 15 de Bogotá, causando várias mortes e deixando muitos danos. Mas, longe de tombar o Estado a seus pés, esse atentado fez com que os Pepes reforçassem suas ofensivas contra ele e contra tudo a seu redor.
As imagens dramáticas das vítimas, bem como a destruição de uma ampla região comercial da cidade, fizeram com que eu dissesse a meu pai certa noite que não concordava com sua violência indiscriminada e com a morte injusta de pessoas inocentes.
– Não se esqueça de que as primeiras vítimas do dito narco-terrorismo na Colômbia foram sua mãe, sua irmãzinha e você, no atentado ao edifício Mónaco.
Não fui eu que inventei isso. Usaram esses meios contra minha família, e minha resposta é utilizar a mesma arma que quiseram empregar para destruir aquilo que eu mais amo, que são vocês.
– Tá, mas eu não gosto de violência, pai. Isso piora as coisas e deixa a gente cada vez mais longe da possibilidade de encontrarmos uma saída. Como concordar com os atentados que fazem crianças inocentes de vítimas? Não acho que a violência seja a única saída. Você deveria procurar outra.
– Por acaso você acha que você e sua irmãzinha não eram crianças inocentes quando puseram aquela bomba lá? Como você quer que eu lute uma guerra contra um Estado que é tão terrorista quanto eu, ou até mais? Como faço para combater uma polícia e um governo corruptos, aliados dos Pepes? Você não vê que o único narcotraficante que eles atacam sou eu? Pelo menos escolhi ser bandido, e é isso que eu sou. Não sou como eles, que de dia usam uniforme e à noite andam encapuzados.
– Pai, ninguém vence as guerras contra as instituições. Todo mundo sai perdendo.
Pouco depois, meu pai achou que já era hora de sairmos da Tediolândia e nos transferirmos para um local próximo, a uma casa de fazenda maior e mais cômoda no bairro de Belén, com uma vista imponente para a cidade. Era a última propriedade daquela região, a estrada pública terminava nela. A casa tinha varandas amplas, de onde meu pai passava horas e horas observando a cidade.
Na parte de trás havia alguns estábulos e um pequeno chiqueiro desativado. A partir de uma das elevações da propriedade era possível ver toda a estrada. O caseiro, de apelido “Macaco”, era quem fazia os contatos com os vizinhos.
Ele também ficou encarregado de alimentar as quatro vacas que meu pai mandou comprar para manter as aparências. Os animaizinhos eram uma grande distração para nós. Meu pai trazia leite recém-ordenhado para tomarmos ainda quentinho. Naqueles momentos, esquecíamos que nosso futuro era incerto e nos encontrávamos numa situação de grande dificuldade.
Ainda assim, tentávamos nos entreter com qualquer coisa. Um dia, nos dedicamos a tentar consertar uma casinha de campo bastante deteriorada que meu pai batizou de O Buraco. Para chegar até lá, era preciso caminhar quinze minutos desde a casa principal, pois não havia estrada.
“Angelito” se ofereceu para arrumar as goteiras do teto, que eram muitas. Comecei a pintar a casa, e logo Manuela e meu pai vieram me ajudar. Assim, passamos vários dias agradecendo por ter algo com que passar o tempo.
Ainda era preciso resolver a questão da luz, pois a potência era tão baixa que, para ligarmos uma pequena televisão, era preciso apagar todas as lâmpadas. Certo dia, estávamos assistindo ao noticiário e a televisão desligou sozinha porque Andrea foi tomar banho.
– Desligue a luz, estamos vendo o noticiário – eu e meu pai gritamos em uníssono.
– Desculpe, desculpe, esqueci. Amor, por favor, traga uma lanterna – respondeu.
Uma vez Copito, o cachorrinho branco, se perdeu. Gritamos seu nome em todas as direções, mas nada de ele aparecer. Não muito tempo depois, vimos que o animalzinho estava logo em frente, no mesmo distrito, socializando com os outros cães. Ficou pulando entre os arbustos e obviamente só voltou quando teve vontade. Da frente da casa, minha irmãzinha o observava e rezava para que ninguém o roubasse, pois não poderíamos resgatá-lo.
Assim como meu pai tinha seu próprio correio, minha mãe também tinha o dela para se comunicar com a família e com algumas poucas amigas. O de meu pai era recolhido por “Angelito”, e o de minha mãe era levado por Andrea. Geralmente, os dois iam juntos até a cidade, se separavam e marcavam um horário para voltar juntos. Nem um minuto a mais, nem um a menos. A ordem era clara: só haveria um minuto de tolerância, pois havia o risco de que alguma das partes fosse sequestrada e revelasse a rede de correios até chegar ao meu pai.
Em 25 de Maio de 1993, minha irmã completou nove anos. Naquela manhã, Manuela, Andrea e o “Macaco” foram andar a cavalo pelas redondezas, mas alguns homens com uniformes de empregados municipais se aproximaram de Andrea e perguntaram se ela era “a doce Ochoa”, referindo-se à esposa de Fabio Ochoa Vásquez. Ela respondeu que não, e os três voltaram rapidamente à casa para contar ao meu pai.
– Peguem as coisas mais importantes, pois vamos partir. O aniversário da menina está cancelado. Vamos encilhar todos os animais e já deixar a bagagem neles. Vamos pelo monte até Tediolândia, que ficado outro lado. Conheço um caminho para irmos montados – disse meu pai, atento para que Manuela não o escutasse. – Filha, preparei um passeio surpresa para o seu aniversário. Vamos a cavalo, e caminhamos um trecho para ver as flores do bosque. Tenho certeza de que você vai gostar – improvisou ele, de um momento para o outro, transformando uma fuga num passeio.
“Macaco” e “Angelito” carregaram um cavalo branco, penduraram uma bolsa de mantimentos nele, uma maleta com dinheiro em espécie e três pistolas e três fuzis AK-47 com munição extra.
Mas minha mãe queria levar a torta. Negava-se a abandoná-la.
– Não, senhor, não vamos deixar a torta aqui, depois de tudo o que fizemos para arranjá-la – insistiu, até que a sobremesa foi acomodada em uma das montarias.
Meia hora depois de aprontarmos a mudança urgente, começamos a subir a encosta e perdemos o rastro de meu pai, que disse ao “Macaco” que nos esperaria mais adiante com Manuela, Copito e Algodona. Seguimos por um caminho equestre, que ficou ainda mais escorregadio com o chuvisco que, alguns minutos depois, virou um temporal.
Minha mãe caminhava a um metro de distância do cavalo, e atrás dela vinha eu e, em seguida, Andrea, quando de repente ouvimos o roçar forte das ferraduras contra as pedras do terreno. O cavalo branco perdeu o controle, parando sobre as patas traseiras, e o peso da bolsa e da maleta com as armas projetou-o para trás com ainda mais força, e vimos que ele cairia sobre nós.
Andrea começou a correr montanha abaixo, e eu fiz o mesmo ao lado de minha mãe, que me empurrava e gritava. O caminho tinha uma pequena saliência por onde passava uma cerca de arame farpado. Andrea se acomodou como pôde sobre o fio da cerca, onde cabia apenas uma pessoa. Na correria, pensei comigo mesmo: “onde cabem um, cabem dois” e me acomodei como pude a seu lado, me equilibrando para não encostar no arame farpado. Minha mãe deve ter pensado “onde cabem dois, cabem três”, e se não houvesse se atirado sobre nós, teria sido gravemente ferida pelo cavalo.
A situação voltou à sua aparente normalidade. Caminhamos o dia inteiro, e uns dez minutos antes de chegarmos vimos meu pai, brincando com Manuela como se nada estivesse acontecendo.
– Quanto falta, pai? – perguntei, exausto.
– Já chegamos. O pior, que era a subida, já passou. Dê uma olhada para ver: é aquela casinha ali embaixo, onde está aquele telhado e umas vaquinhas.
Chegamos a tirar a roupa, pois estávamos à beira da hipotermia, e tomamos uma ducha de água muito gelada. Mas, depois de vestidos, voltamos ao normal. Minha mãe se arrumou primeiro e logo ajudou a preparar a comida, enquanto lutávamos para acender o fogão a lenha.
Na hora de dormir, subimos até a casinha pré-fabricada ainda não terminada. Mas o “Macaco” havia deixado uma luz acesa, e o lugar estava cheio de besouros de todos os tipos. Não havia como tirá-los da casa. Quando nos deitamos para dormir, Andrea e eu não conseguíamos pegar no sono por causa do frio intenso. Não conseguíamos nos aquecer, apesar dos lençóis duplos que havia em nossa cama. Os cachorrinhos dormiam conosco e tremiam sem parar. Tivemos que usar o secador de cabelo de Andrea para aquecer a cama, pois continuávamos tremendo de frio.
Diante da piora visível de nossa situação cotidiana, meu pai nos disse um dia que continuava trabalhando em sua velha ideia de se unir à luta guerrilheira com o ELN.
– Já tenho contato direto com eles. Vão me dar um pelotão para comandar. Vou comprá-lo por 1 milhão de dólares. Na selva, ninguém me pega. Fico escondido lá por uns tempos, me dedico a recuperar meu negócio, me fortaleço e começo a tocar o projeto do Antioquia Rebelde, porque não vejo outra saída. O governo já disse que não vai negociar comigo, que quer me ver morto.
Fiquei mudo. Não sabia o que dizer diante do plano impossível de meu pai. Ele havia demonstrado que podia driblar qualquer risco, mas nossa realidade já não era a mesma.
O tédio e o desconforto desse esconderijo fizeram com que, certo dia, meu pai dissesse que deveríamos voltar para o Buraco. Felizes, deixamos a Tediolândia para trás. Era 3 de Junho de 1993. Naquela noite, cabia a mim o turno de guarda, e fiquei escutando as notícias do rádio. Estava fazendo isso quando anunciaram a morte de meu tio, Carlos Arturo Henao.
Fiquei muito triste e saí correndo para avisar meu pai. Encontrei-o abraçado à minha mãe, que chorava inconsolável diante da televisão, onde estavam dando a mesma notícia.
Apenas para atacar meu pai, os Pepes assassinaram um irmão de minha mãe que nunca quis participar de nenhum ato violento e se dedicava à venda de esfregões em Cartagena. Mas cometeu o erro de viajar a Medellín para visitar a esposa e os filhos num momento em que o aeroporto de Rionegro era comandado pelos Pepes.
Naquela noite, minha mãe perdeu seu segundo irmão. Mario e Carlos foram levados pela violência, e Fernando começava a ser levado pelo cigarro, pelo abuso de drogas e pelo desgosto.
O isolamento de meu pai em relação ao mundo exterior era total, e talvez por isso não percebemos a presença da “lei” durante semanas. Mas meu pai era contrário à idéia de ficar muito tempo num mesmo lugar, e decidiu pegar de novo a estrada.
Nos meses seguintes, mudaríamos de esconderijo com bastante frequência. Do Buraco, fomos a uma cabana, no passo de La Cristalina, um lugar belo na parte antioquenha do Magdalena Medio. Dali, partimos para um apartamento próximo à Quarta Brigada, em Medellín, e em seguida para o complexo de edifícios Suramericana, próximo à praça de touros de La Macarena.
Agora que estou me dedicando a tentar lembrar com precisão o que vivemos naquela época, é difícil saber com clareza o tempo que permanecemos enfurnados em cada esconderijo. Naquele ano, não contávamos os dias. Não importava se era domingo, Segunda ou Sexta. Não fazia diferença: só pensávamos em nossa segurança. Mas sabíamos que a melhor maneira de nos deslocarmos de um local ao outro era sob chuva.
– Os policiais não gostam de se molhar. Por isso, o momento ideal para o deslocamento é quando está chovendo. Com chuva não há blitze – afirmava meu pai.
Nós tínhamos, então, uma maneira diferente de interpretar a chuva. Era um manto de proteção para circular pela cidade. Com chuva, viajávamos mais tranquilos. Por isso, muitas vezes a chuva nos mostrava que era chegado o momento de partir.
Assim, sob uma chuva torrencial, chegamos ao complexo de edifícios Suramericana, e entramos pelo subsolo. Subimos até um apartamento no décimo andar, com três quartos e dependência de empregada, onde o “Angelito” ficou. A vista para a cidade era linda, e éramos esperados por um casal jovem com um bebê recém-nascido.
Conforme me contou meu pai, os guardiões do esconderijo eram um casal humilde de trabalhadores desempregados; eram recém-casados, tinham um bebê de colo e estavam sem casa própria e com um futuro incerto.
– Prometi que daria o apartamento e o carro para eles quando a gente não precisasse mais. Na verdade já são deles, estão no nome deles. Isso os deixou muito contentes; a reclusão é difícil, mas eu dou um bom dinheirinho para eles.
O melhor lugar daquele apartamento era uma pequena varanda de onde era possível ver a cidade e a passagem das viaturas do Bloco de Busca ou do Exército. Passávamos muitas horas ali.
Numa dessas noites, meu pai resolveu fumar seu baseado de maconha. Era a primeira vez que eu o via fumar aquilo. Minha mãe fez um gesto de desaprovação e se trancou no quarto, onde Manuela dormia em sono profundo. Andrea observou a cena da sala e permaneceu em silêncio enquanto tentava se distrair com algumas revistas.
Eu estava perto de meu pai e de “Angelito”, que também estava fumando – uma situação que não era novidade, pois ele nunca mentiu a respeito de seu vício. Portanto, não o julguei por aquilo.
Uma vez, ele me confessou que quando eu o via caminhar para longe de casa na fazenda Nápoles era porque pretendia fumar maconha. Naquela ocasião, meu pai me deu uma aula magistral sobre os perigos do consumo de drogas, suas diferenças, efeitos e potencial viciante. Disse-me que se algum dia quisesse provar alguma, deveria fazer isso com ele, e não com amigos.
Na maioria dos esconderijos, Andrea fazia às vezes de professora de Manuela, porque minha mãe havia organizado para que mandassem exercícios do colégio. Ela tinha uma rotina diária de estudos, fosse na cidade ou na selva. Aquilo era um passatempo para ela, e também para a própria Andrea. O tédio nos confinamentos prolongados chega mais cedo se não inventamos uma maneira de ocupar nossas mentes e nossos corpos. Minha mãe também dava aulas a minha irmã, e dividia com Andrea a pequena escola de uma aluna só. Eu também recebia exercícios xerocados dos cadernos de alunos dedicados, para não interromper meu último ano do colegial. Fiz isso durante meses, sempre a contragosto, devido à dificuldade que tinha para me concentrar.
Para completar o ambiente de mal-estar em que vivíamos naqueles dias, o reconhecido e respeitado astrólogo Mauricio Puerta publicou na revista Semana a previsão de que meu pai morreria naquele mesmo ano. “Nessa transição, é possível que Escobar tenha seu encontro com a morte”, sentenciou.
– Dê um jeito de achar esse cara e ver quem ele é, e o que tem para dizer, Tata – pediu meu pai. Ficamos surpresos, pois ele sempre fora cético em relação a adivinhações.
Minha mãe mexeu alguns pauzinhos e conseguiu localizar Puerta, a quem enviou os nomes, datas e horas de nascimento de todos nós. Ele nos devolveu fitas cassete com suas previsões, mas só o conheceríamos pessoalmente em Bogotá, depois da morte de meu pai. Seus vaticínios nos surpreenderam por estarem corretos. Para começar, ele garantiu que viveríamos por muitos anos em uma cidade ao lado de um dos maiores rios do mundo. Ele não especificou qual. Tempos depois, acabaríamos morando em Buenos Aires, cidade banhada pelas águas do grande rio da Prata. Devo dizer que, no que nos dizia respeito, Mauricio não falhou até hoje.
Todavia, como sempre, chegou a hora de nos mexermos outra vez. Esperamos a noite e, de olhos fechados, chegamos a uma velha casa dentro da cidade. Era a morada de “Monito”, referência a um garoto loiro que morava lá com os pais, os ditos guardiões do esconderijo.
A casa tinha um pequeno pátio ao lado da sala de jantar e da sala de estar, por onde ao menos se podia ver o céu através das grades que impediam a entrada de estranhos. Ali, celebramos o Dia dos Pais. Cada um escreveu uma carta, como fazíamos em qualquer data comemorativa.
Dias depois, meu pai permitiu que minha mãe, minha irmã e Andrea fossem passar uns tempos com a professora Alba Lía Londoño, para que Manuela trocasse um confinamento por outro, visse outras pessoas, aprendesse um pouco de arte e melhorasse de ânimo. Preferi ficar ao lado de meu pai.
Na semana em que ficamos sozinhos, as provisões começaram a escassear, e chegou o momento de o casal de guardiões sair para comprar comida. Às cinco horas da tarde eles espiaram pela janela, mas perceberam que a polícia estava montando uma blitz bem em frente à casa onde estávamos.
– Vamos ter que cancelar a saída, irmão. Até essa gente ir embora. Não temos outra opção além de ficarmos quietinhos. Não acendam nenhuma luz, nem liguem a televisão, o rádio, nada. E o garotinho não deve fazer barulho: se quiser brincar, é melhor fazer algo lá pela cozinha. Não façam nenhum ruído até eu dizer que pode. Cuidado, isso não é por mim, mas porque não quero que eles me encontrem aqui por mero acaso – explicou ao pai do garoto, após confirmar através de uma frestinha na janela que, de fato, os policiais estavam montando uma blitz.
A situação era tensa. Meu pai disse que o melhor era passar a impressão de que a casa estava vazia para que a polícia nem se aproximasse.
Ele ficou um bom tempo espiando pelo olho mágico da porta principal, e de vez em quando me chamava para espiar com cuidado e observar os movimentos de um policial que havia parado a apenas dez centímetros de distância. Podíamos ver sua silhueta com perfeição, com o fuzil nas mãos, o cano apontado para cima e o chapéu verde com uma das abas dobradas.
Os dias passavam e a blitz permanecia ali, imóvel. A única coisa que percebíamos era que os agentes eram substituídos por outros, novos. Mas não arredavam pé. A comida havia acabado, e chegou um momento em que só o que restava para comer era uma sopa de mondongo velha e enverdecida, já em estado de decomposição, que ferveram uma segunda vez com mais água e um cubo de caldo de galinha. Não havia nada mais para comer.
Durante vários dias, senti medos de todos os tipos: passava por estados de otimismo, aceitação, negação, desespero e terror, só de imaginar a chuva de balas que haveria caso os policiais entrassem à força e meu pai os enfrentasse a tiros.
– Pai, e o que vai acontecer se esses caras ficarem aí um mês? Como vamos fazer para sair de uma casa que eles pensam que está vazia?
– Fica tranquilo, meu filho. Eles vão sair daí a qualquer momento. Relaxa, que isso é bom para a gente emagrecer – respondeu sorrindo, como se estivéssemos acampando.
Foram dias de silêncio profundo, impostos pela discrição absoluta para que não fôssemos vistos ali dentro, de forma que até as conversas eram escassas. Menos mal, pensei, que minha mãe, Manuela e Andrea não estavam lá, porque senão o drama teria sido ainda maior.
Em cima de uma mesa havia pouco mais de 2 milhões de dólares em dinheiro, mas estávamos de mãos atadas. Não podíamos gastar um único dólar daqueles, pois ninguém ali dentro tinha liberdade para sair de casa. Se quiséssemos, poderíamos comprar o supermercado inteiro. A sensação de impotência era enorme. Ao lado de meu pai, experimentei uma forma estranha de “pobreza” extrema.
Finalmente, oito dias depois, quando já estávamos sem forças, a polícia retirou a blitz e partiu, e tudo voltou ao normal.
Naquele mesmo dia, a geladeira ficou cheia outra vez. Em seguida, as três mulheres retornaram, e preferimos não comentar a experiência terrível dos dias anteriores.
A peregrinação de esconderijo em esconderijo não havia acabado. Dessa vez, chegamos à casa azul. Ainda que os Pepes hostilizassem cada vez mais os advogados de meu pai, um deles, Roberto Uribe, tinha um esquema para receber as mensagens que conseguíamos enviar por “Angelito”.
O conteúdo das cartas havia variado perceptivelmente nos últimos momentos, e naquele fim de Julho de 1993 meu pai havia posto na mesa a possibilidade de sairmos do país, embora desconfiasse da seriedade do Ministério Público.
– Fique tranquila, “Ula”, que o Roberto Uribe está ajudando com a saída de vocês do país. É uma das condições para que eu me entregue. O promotor De Greiff se comprometeu a arranjar um refúgio para vocês em algum país, e eu me entregarei em seguida.
Nessa época, meu pai chamava minha mãe de “Ula” por deboche, porque ela andava cozinhando, limpando e passando roupa como fazia Eulalia, uma antiga empregada doméstica, um luxo que já não tínhamos desde que a guerra havia esquentado.
Manuela e eu começamos a perceber que nossos pais passavam muito tempo discutindo nosso futuro. Depois comentaram suas conversas e conclusões, que levaram rapidamente à necessidade de nos separarmos, pelo bem de todos. Eles concordavam que Manuela e eu não deveríamos interromper nossos estudos por mais tempo.
– Sei que fora do país não vai acontecer nada com vocês. Já prometeram que vão arranjar um país. Enquanto isso, fico escondido nas montanhas com os “elenos”, e ninguém vai me ver por um bom tempo enquanto preparo minha rendição. Agora, também não aconteceria nada com vocês se estivessem comigo na selva. Essa opção também existe, mas vocês precisam estudar, e lá isso não é possível. Vocês são a nossa prioridade, e por isso decidi, ainda que sua mãe não confie neles, que o melhor é que o Ministério Público proteja vocês em Altos. Já autorizei o CTI a se instalar no apartamento 401 e organizar sua chegada, mas isso não precisa ser feito amanhã. Vamos passar o aniversário da sua mãe juntos aqui. Falta pouquinho.
A notícia de nossa eventual separação caiu como um balde de água fria. Pensei em meu futuro, mas também em meu pai. E ambos eram prioridades. Me vi numa grande encruzilhada, pois tinha certeza de que sua segunda entrega à Justiça traria paz. Eu tinha confiança de que ele não desperdiçaria aquela nova oportunidade. Unir-se ao ELN seria um salto no escuro. Mas a verdade é que o único ato de lealdade era aconselhar que se entregasse, sem impor mais condições.
Aqueles dias foram cinzentos e silenciosos. Estávamos deprimidos, e percebia-se uma angústia muito grande no ar. Em 3 de Setembro de 1993, minha mãe completou 33 anos. Celebramos para cumprir o ritual, mas não tínhamos ânimo para nos divertir. Pela primeira vez, um dia como aquele passou despercebido, e a comida teve sabor de incerteza.
Dois dias mais tarde, em 5 de Setembro, tivemos um motivo para esquecer nossas amarguras. A seleção de futebol da Colômbia venceu a Argentina por 5 a 0 fora de casa, na reta final para sua classificação à Copa do Mundo nos Estados Unidos de 1994. Naquele dia, gritamos a cada gol em frente à televisão que havia na casa. Foi um instante de felicidade que durou apenas os noventa minutos da partida. Nunca esquecerei aquele dia, não apenas pela goleada, mas também porque havia anos que não via aquela expressão de felicidade no rosto de meu pai.
Mas como o tempo não para, chegou o dia de partir, o dia em que vi meu pai chorar. Foi a primeira e única vez que ele se deixou ver daquela maneira. Eu também quis chorar, mas consegui me conter para consolá-lo quando abaixou a cabeça, com os olhos encharcados. Era 18 de Setembro de 1993.
Fiquei profundamente comovido com aquela cena: era eu quem deveria apoiá-lo dali em diante e manter viva a confiança de que tudo daria certo. Eu estava ciente das dificuldades, mas nunca tive dúvidas de que meu pai encontraria a maneira certa de se entregar outra vez à Justiça.
A vida nos fez escolher entre a morte certa em algum ponto da selva colombiana ou a aposta no exílio e na rendição definitiva de meu pai.
Meu pai deu abraços intermináveis em Manuela e em minha mãe. Não conseguiu dizer nada a Andrea, a última de quem devia se despedir. Suas lágrimas não o deixavam falar. De forma atípica, eu continuava cheio de otimismo.
– Bom, infelizmente a gente tem que ir – eu disse, com a voz entrecortada, e em seguida lhe dei o último abraço e um beijo na bochecha.
Meu pai recuperou a fala e disse que ainda confiava que os agentes do Ministério Público pudessem ser “gente boa” e cumprir com a palavra de perseguir os Pepes. Suas palavras me tranquilizaram, pois era a primeira vez que ele confiava em um órgão do governo. Ele não confiava era em seu irmão, Roberto.
– Juancho e Tata, cuidem muito da menina, porque se acontecer alguma coisa comigo, e Roberto ficar com o dinheiro, pode até ser que ele lhes dê uma ajuda. Mas se não ficar, cuidem da menina, que ele é capaz de sequestrá-la. Contem a eles as informações que tenho sobre os Pepes. Levem esse endereço para lhes entregar. Eles dizem que não atacaram os Pepes porque não têm informações quentes. Agora eles vão ter. Bem, façam isso, vou seguir vocês por algumas quadras para garantir que cheguem bem, e não se esqueçam de me avisar por rádio ao chegarem.
Saímos da casa azul, e dirigi um Chevrolet Sprint verde até o edifício Altos. Olhei o tempo todo pelo retrovisor, e vi que meu pai nos seguia em outro veículo, acompanhado de “Angelito”.
Senti-me seguro por nós, mas achei arriscado demais que meu pai nos acompanhasse até a porta do edifício onde viveríamos em um momento como aquele. Eram quase onze horas da noite quando virei à esquerda para chegar à portaria do edifício, e nesse momento meu pai buzinou duas vezes.
Uma vez no edifício, subimos até o terceiro andar, onde estariam os agentes do CTI, pois meu pai havia dito que chegariam em grupos pequenos, para que não se soubesse que estávamos sendo protegidos. Supunha-se que tudo seria feito com muita discrição por motivos de segurança. Bati na porta várias vezes, mas ninguém abriu.
Toquei a campainha e nada. Comecei a achar aquilo estranho quando escutei uma voz:
– Quem é? Identifique-se.
– É o Juan Pablo Escobar Henao, filho de Pablo Escobar. Estamos aqui por ordens dele para nos entregarmos à proteção do Ministério Público. Abra, por favor, estou com a minha família.
– Está armado?
– Armado? Meu Deus, por que eu estaria?
Abriram devagar e com cuidado. Eram dois agentes armados que nos olharam de cima a baixo com cara de quem enfrentaria as feras mais perigosas do mundo. No fundo do corredor do apartamento, vários homens estavam atrás das paredes apontando fuzis R-15 e metralhadoras MP-5.
– Está tudo bem, pessoal, somos nós. Peço desculpas por termos acordado vocês. Podem dormir, amanhã conversamos. Vamos subir para o nosso apartamento, o 401, e dormir lá.
– Não, esperem aí, pelo menos duas pessoas devem acompanhar vocês, por questões de segurança – disse “Alfa”, um dos agentes, que parecia mandar no grupo.
– OK, então vamos subir e ver como estão as coisas lá, porque o apartamento não tem muitos móveis – respondi.
De fato, o imóvel estava praticamente vazio. Lá, conheci os agentes “A1” e “Imperio”. O lugar estava quase totalmente acabado, mas havia apenas três colchões, a cozinha se encontrava vazia e tampouco havia algo para comer ou beber. Teríamos que esperar pelo dia seguinte para resolver essas questões. Já era tarde. As luzes do edifício estavam apagadas.
No dia seguinte, minha mãe já tinha falado com uma vizinha, que nos emprestou parte de sua louça, algumas panelas e até sua empregada doméstica, que apareceu com uma bandeja cheia de comida.
Dois dias depois chegou Juan Carlos Herrera Puerta, o “Nariz”, meu amigo de infância que, com o tempo, se tornou meu guarda-costas. Eu havia pedido que ele me acompanhasse porque tinha a intuição de que devíamos ter proteção extra. Ele tinha uma escopeta de oito tiros com licença vigente, e por isso os agentes do CTI não poderiam se opor à sua presença, que lhes pareceu muito suspeita, visto que os únicos autorizados a terem contato direto comigo eram “A1”, “Alfa”, “Imperio” e “Pantera”.
Pouco a pouco, começamos a conviver, mas de uma hora para a outra “A1” me informou que “Nariz” deveria sair do edifício, pois não tinha permissão para permanecer ao nosso lado.
– Olha só, “A1”: até onde sei, vocês estão cuidando da gente porque foi esse o acordo entre o meu pai, o Ministério Público e o governo, como parte do processo de rendição dele. Não tenho por que pedir sua permissão para decidir quem convido e quem não convido para vir a minha própria casa. Se entendi bem, a minha situação é de protegido, e não de prisioneiro. Ou estou enganado?
“Nariz” não foi embora. Consegui impor sua presença como nosso guarda-costas. Com a intervenção de “Imperio”, a relação com “A1” melhorou nos dias seguintes, e até começamos a jogar partidas de futebol no pátio do edifício.
No entanto, o clima de descontração em Altos se desfez de maneira abrupta devido a um ataque dos Pepes.
O fato ocorreu uma tarde, após as cinco horas, quando escutamos explosões que pareciam fogos de artifício. Espiei com cuidado por uma janela, e vi que na interseção da transversal inferior com a Loma del Campestre haviam parado quatro veículos particulares cheios de homens armados e à paisana. Eles desceram dos veículos, e o que parecia ser jovens brincando com bombinhas se revelou uma intensa saraivada de balas contra a fachada do edifício.
Nos escondemos no armário do quarto principal, e “Nariz”, escondido atrás de um vaso enorme, disse que não valia a pena revidar o ataque, pois sua arma não era de longo alcance. Alguns minutos depois chegaram “A1” e “Alfa”, com as armas destravadas e muito nervosos.
– Olhe só, “A1”, por que vocês não vão atrás desses caras e pegam eles? Estão ali na esquina atirando a torto e a direito – pedi, desesperado.
– Não está vendo que eu não posso fazer isso? Nossa missão é proteger vocês, não sair atrás de alguém – tentou justificar.
– Então para que tem mais de vinte agentes nesse edifício para cuidar da gente, se ninguém faz nada quando somos atacados? – insisti, e nesse momento os quatro veículos desapareceram.
O ataque inesperado aumentou a dificuldade de Manuela para dormir, e Andrea perdeu o apetite a ponto de desmaiar alguns dias depois, o que nos obrigou a levá-la a uma clínica acompanhada de “Nariz” e quinze homens do CTI. O médico que a atendeu disse que ela precisava comer, pois seu estado era preocupante.
O Altos começou a ser transformado num forte. O Ministério armou três trincheiras com dezenas de sacos de terra: uma em cima da portaria, onde ficaria um homem vinte e quatro horas por dia, e as outras em cada uma das esquinas da avenida.
Ao mesmo tempo, chegaram mais homens de Bogotá. O número de agentes do CTI subiu para quarenta, todos armados com fuzis, pistolas e metralhadoras. As patrulhas dentro do edifício se tornaram permanentes, e uma sirene enorme e barulhenta foi instalada no terraço do edifício.
A estréia da sirene não tardou muito, pois escutamos um tiroteio e todos correram para seus postos. Nós nos escondemos rapidamente no último canto do closet do quarto principal, e “Nariz” fechou a porta para evitar que alguém entrasse. Os minutos eram intermináveis. Minha mãe, minha irmã e Andrea rezavam enquanto eu conversava com “Nariz” através das portas do banheiro e do armário.
Quando tudo se acalmou, um agente do CTI que chamavam de “Carro-bomba” informou que três homens desceram de dois carros e começaram a atirar. Um deles lançou uma granada de fuzil que colidiu com a fachada do quinto andar do edifício.
Pantera chegou algumas horas depois e disse que trazia notícias de Bogotá:
– O doutor De Greiff mandou dizer que está procurando um país para vocês, e que não está enrolando com esse assunto. É que algo tão delicado precisa ser tratado com discrição. Por isso tudo está tão devagar. Mas é para confiarem nele, porque o que ele deseja é a rendição do seu pai.
Com a intenção de informar meu pai de tudo o que acontecia, comecei a usar uma pequena filmadora, onde registrei todos esses eventos. Passei horas na sacada filmando os veículos que considerava suspeitos. Era como um diário em vídeo de cada ataque e cada acontecimento fora do normal.
Num dia daqueles, levamos um grande susto. “Imperio” se aproximou para contar que, naquele momento, o Bloco de Busca empreendia uma imensa operação contra meu pai no estado de Belén Aguas Frías, e que praticamente o haviam localizado. A intenção real do agente do CTI era estudar minha reação, pois meu pai havia sido localizado a partir da triangulação de uma conversa entre nós dois por rádio.
Dias mais tarde, recebemos uma carta de meu pai a respeito desse episódio, em que relatou detalhes horripilantes de sua fuga milagrosa. Ele disse que, quando viu os caminhões da polícia chegando, soube que o haviam rastreado por causa do rádio. Acrescentou que tinha bastante vantagem sobre eles, pois a montanha era muito íngreme. Quando viu a “lei”, prosseguia ele, saiu correndo beirando uns precipícios terríveis, onde perdeu o rádio e a lanterna. Contou que se assustou muito ao pensar que aquele seria seu fim, pois o frio e a chuva começaram a debilitá-lo. Finalmente, saiu num bairro de Belén, onde as pessoas olhavam para ele porque estava todo enlameado, embora ninguém o tenha reconhecido graças à barba comprida. Então tomou um táxi e foi para a casa de uma prima.
Perdemos o contato com meu pai outra vez, até que em 6 de Outubro de 1993 “Imperio” entrou correndo no apartamento e me disse:
– Fiquei sabendo que mataram um sujeito que chamavam de Angelito. Vocês o conhecem? Quem era? Estão dizendo que ele e o irmão morreram num confronto com a polícia aqui em Medellín.
– Não o conheço direito. Não era muito importante, vi ele em La Catedral, mas não era ninguém – respondi, contendo as lágrimas,pois sabia que a notícia implicava que estavam a poucos metros de pegar meu pai.
Assim, passamos o dia 31 de Outubro dissimulando nosso luto com a maquiagem de uma especialista que minha mãe contratou para maquiarem Manuela e ajudar com a fantasia. Naquela noite, houve uma pequena festa de Halloween no prédio, à qual compareceram muitos vizinhos. Nada de especial, como todos os anos anteriores. “Nariz” se lamentava por não poder ver seu filhinho fantasiado, pois precisava cuidar de mim.
Os agentes do Ministério Público não sabiam como explicar o fato de que, embora revistassem quem saía e entrava do edifício, eu ainda mantivesse contato com meu pai por cartas. Não entendiam como meu pai era informado das mensagens que o promotor De Greiff enviava por meu intermédio. E o pior é que nenhum de nós saía do apartamento.
O que eles não sabiam era que diversas pessoas que passavam bem debaixo de seu nariz nos ajudavam sem segundas intenções. Como Alicia Vásquez, uma das administradoras do edifício, que se solidarizou com a nossa situação e se ofereceu para ajudar com o que precisássemos, pois não podíamos descer nem ao estacionamento de visitantes. A bem-intencionada Alicia acabou recebendo em sua casa a correspondência de alguns familiares e conseguia entrar com ela no edifício, pois não era revistada.
Outro correio eficiente era Nubia Jiménez, a babá de Manuela, que se encontrava com Alba Lía Londoño, nossa professora, e recebia as cartas entregues a ela por “Angelito”, cuja origem era meu pai.
A incógnita de como eu fazia para me comunicar com meu pai logo foi resolvida. “Nariz” queria ver Camilo, seu filhinho, e me pediu permissão para sair. Eu disse para ele sair do edifício através da fenda que havia em uma das laterais da piscina, a mesma rota que havíamos utilizado para escapar dos Pepes no dia da frustrada viagem para os Estados Unidos.
– Não, Juancho, você quer que eu molhe os sapatos passando por ali? Os caras da CTI vão me escoltar, já pedi o favor e eles me disseram que sim. Fique tranquilo que pego um táxi, não vou levá-los até minha casa.
“Nariz” fez pouco caso de minhas súplicas e pediu para eu ficar tranquilo, pois “Alfa”, “A1” e “Império” o levariam à avenida El Poblado no mesmo Chevrolet Sprint em que havíamos chegado no edifício dias antes.
Mas o que eu temia aconteceu. “Nariz” tinha permissão para passar o fim de semana com sua família e voltar no domingo, 7 de Novembro, às seis horas da tarde. Mas ele nunca voltou, e seu corpo jamais foi encontrado. Os Pepes sumiram com ele.
Dois dias depois, em 9 de Novembro, uma terça-feira, homens fortemente armados e encapuzados chegaram ao condomínio Los Almendros e, após derrubarem a porta, puxaram Alba Lía Londoño, nossa professora, pelos cabelos. Tampouco tivemos mais notícias dela. Assim que fiquei sabendo do que havia acontecido, subi correndo pelas escadas. Precisava fazer uma ligação urgente para salvar a vida de Nubia Jiménez, a babá. Ela e Alba Lía eram parte do sistema de correio familiar, e por isso seu sequestro era iminente.
Entrei no apartamento vazio e disquei o mais rápido que pude. O telefone tocou várias vezes, até que o filho de Núbia finalmente atendeu e disse que sua mãe havia acabado de sair pela portaria de seu condomínio, onde havia um táxi esperando por ela.
– Meu irmão, por favor, corra lá, não deixe ela entrar no táxi que vão matá-la. Corre, vai, vai, vai! – eu disse aos gritos, e o rapaz largou o telefone e saiu correndo.
Eu tremia e rezava com o telefone no ouvido, rogando para que ele tivesse a força necessária para alcançar a mãe e salvá-la de uma morte certa. Esperei impaciente e escutei os passos do garoto, que pegou o telefone agitado e me disse que não a havia alcançado. Elasaíra para uma falsa reunião com a professora que, àquela altura, já estava desaparecida.
Uma nova fase da caçada ao meu pai havia começado. Os Pepes sabiam que, pegando os elos do correio um a um, chegariam até ele. E como não havia regras, nenhuma vida era importante. Assim como as vidas de muitas pessoas não haviam sido importantes para meu pai. Estávamos pagando na própria pele pelos atos dele.
Achei que outras pessoas poderiam ser entregues por Nubia se os Pepes a torturassem, e propus a Andrea fazermos uma listagem de nomes. Embora a maior parte das pessoas que nos rodeava houvesse escapado, percebemos que apenas uma permanecia em sua residência habitual: “Tribilín”, um dos guardacostas de meu pai.
Deduzimos que “Tribi” certamente seria a próxima vítima, pois era fácil localizá-lo em Envigado. Não sabíamos onde ele morava, mas alguém no Altos forneceu seu endereço e enviamos uma empregada doméstica para avisá-lo de que algo podia acontecer. Mas ela voltou quarenta minutos depois, chorando:
– Quando estava chegando ao condomínio onde ele mora, havia diversos carros com homens armados e encapuzados entrando – disse, inconsolável, e implorou que fizéssemos algo para salvar a vida dele.
Mas não havia nada a ser feito. “Tribilín” foi levado ferido pelos Pepes quando tentou se defender atirando.
A partir daquela noite, não soltei mais a arma que “Nariz” havia deixado em nosso apartamento. Eu sabia que restavam poucos da longa lista dos Pepes. Praticamente todas as pessoas ligadas ao meu pai estavam mortas, e as que não estavam, além de serem poucas, haviam fugido ou mofavam em uma prisão.
Os únicos que continuavam vivos éramos nós, a família dele. Portanto, minha mãe, minha irmã e os dois filhos da professora, que haviam chegado naquela tarde, dormiam em colchões dentro do closet. Andrea, solidária e valente, permaneceu ao meu lado.
Foram as noites mais angustiantes de minha vida. Eu fechava um olho para descansar o outro. Aquela situação extrema e a interrupção da comunicação com meu pai complicavam ainda mais nossa saída do país, que não parecia avançar. “Pantera” trouxe uma notícia da diretora nacional do Ministério Público, Ana Montes, braço direito do promotor De Greiff, que havia chegado a Medellín: ela queria que meu pai se entregasse antes, para depois arranjar um país para nós irmos.
O interesse de facilitar nossa saída do país havia ficado para trás. Agora, tratava-se de chantagem. Estávamos literalmente dormindo com o inimigo.
Aquele ambiente adverso e a iminência da morte de algum de nós levaram-nos a decidir viajar para a Alemanha sem consultar ninguém, e assim mandamos comprar as passagens. Mas tudo estava sendo vigiado, e logo descobriram nosso destino: Frankfurt.
Ana Montes havia chegado a Medellín e não estava de mãos vazias. Fria, disse que o Ministério Público havia aberto duas acusações contra mim: pela suposta violação de diversas jovens em El Poblado e pelo transporte de coisas ilegais. Ficou claro que tentariam evitar mais uma vez a nossa saída do país.
– Veja bem, doutora – eu disse, sempre olhando em seus olhos. – Sua acusação de eu ter estuprado menininhas é incrível. Eu jamais faria tal coisa, e devo reconhecer diante da senhora, com o perdão da expressão, é mais fácil elas fazerem isso comigo do que o contrário. Não quero exagerar, mais muitas vezes preciso as tirar de cima de mim, porque querem ficar com o filho de Pablo a qualquer custo. Sendo assim, posso garantir que não preciso estuprar ninguém.
– Bem, na verdade é uma informação não confirmada, mas algumas garotas disseram que um dos estupradores fingia ser um familiar de Pablo Escobar e tinha cabelos loiros, por isso presumimos que estavam falando de você. Acredito em suas palavras, mas o que você tem a dizer sobre a caixa de armas com a qual entrou no edifício? – perguntou, certa de que agora me pegaria.
– Armas? Quem viu armas aqui? Em uma caixinha? Doutora, vou lhe propor o seguinte: eu fico aqui e você vai com os homens que escolher e revista o apartamento inteirinho. Se a senhora quiser, pode revirar o edifício para encontrar essa caixa que tanto a preocupa. Nem precisa de um mandato, eu dou permissão.
– Está bem, eu acredito em você, ok. Espero que não esteja mentindo. Vou a Bogotá para continuar meu trabalho. Não precisamos revirar o edifício. Mas pode informar ao seu pai de que só vamos arranjar um país para vocês se ele se entregar. Ah, e diga para ele não demorar muito para decidir, porque vamos lhes retirar a proteção nos próximos dias, e vocês continuarão apenas com a mesma segurança que o Estado colombiano oferece a todos os seus cidadãos.
– Doutora, como você pode fazer isso conosco, pelo amor de Deus? Vão deixar meus filhos e eu aqui, desprotegidos? Isso não é certo. Estamos aqui porque vocês quiseram, porque prometeram nos tirar do país e nos dar refúgio em troca da rendição de meu marido. E agora ameaçam tirar a nossa proteção! – disse minha mãe.
Finalmente, na manhã de um dia ensolarado no final de novembro, partimos para Bogotá para fazer conexão com um voo que iria direto para Frankfurt.
Mas, como havíamos previsto, a Alemanha não permitiu nossa entrada, embora tivéssemos todos os papéis em dia. Nos forçaram a retornar à Colômbia, por solicitação do governo e do Ministério Público.
Outra vez na Colômbia, em 29 de Novembro, os funcionários do Ministério Público que nos receberam no aeroporto nos informaram que o único local onde podiam garantir nossa segurança era no Residencias Tequendama, um aparthotel exclusivo no centro de Bogotá. Permanecemos lá durante as horas seguintes, pois não tínhamos informações do paradeiro de meu pai. Apenas esperávamos que ele se comunicasse a qualquer instante.
Em 2 de Dezembro, meu pai acordou um pouco mais cedo que de costume. Tinha junto ao ouvido o radinho no qual escutava notícias sobre nós.
Naquela manhã, acordamos às sete horas, apesar do cansaço físico acumulado pela viagem extenuante de ida e volta à Europa em apenas quarenta e oito horas. Recebi diversas ligações com pedidos de entrevistas para veículos locais, e também para os mais prestigiados jornais de Europa, Ásia e Estados Unidos. Respondi a todos que não daríamos declarações. No dia anterior, eu dissera algumas palavras breves numa emissora de rádio com o único propósito de informar meu pai, com minha própria voz, que estávamos bem, e o parabenizei rapidamente por seu aniversário.
Depois de pedir o almoço no quarto, lá pela 13h30, nos avisaram pelo telefone que quatro generais do Exército subiriam para falar com a família inteira. Não havia como recusar aquela conversa, que foi distante, mas cordial. Após algumas frases prontas, fomos informados de que cem soldados estavam reforçando a segurança do edifício, e que haviam aberto uma exceção e mandado esvaziar o apartamento 29.
Em meio à conversa, o telefone tocou e atendi, como de costume. Era o
recepcionista.
– Senhor, boa tarde, estou com o senhor Pablo Escobar na linha, e ele deseja falar com você.
– Oi, vó, tudo bem? Não se preocupa, estamos bem – eu disse a meu pai, que deve ter entendido que havia alguém por perto, e desligou a contragosto, pois queria continuar falando.
Prosseguimos com a conversa com os generais, e achei que meu pai não ligaria mais, mas cinco minutos depois o telefone tocou outra vez.
Vó, por favor, não nos ligue de novo, a gente está bem – insisti, mas ele disse para não desligar e pediu para falar com minha mãe, que correu até o quarto ao lado.
Despedi-me dos militares e fui alertar minha mãe para que não demorasse no telefone, pois era certo de que a chamada estava sendo rastreada. Ela assentiu e se despediu de meu pai.
– Meu bem, tome muito cuidado, de todas as maneiras. Você sabe que todos precisamos disso – ela balbuciou em meio a soluços.
– Fique tranquila, amor, que meu único incentivo na vida é lutar por vocês. Estou enfiado numa caverna, estou muito, muito seguro. A parte mais difícil já passou.
Em outra ligação, comentei que no dia anterior havíamos conversado com o jornalista Jorge Lesmes, da revista Semana, e combinamos que ele enviaria um envelope timbrado com diversas perguntas sobre o que estava acontecendo conosco. Comentei que o questionário me transmitia confiança, pois poderíamos refletir sobre as respostas, enquanto os demais repórteres, sem exceção, queriam a entrevista na hora, ao vivo.
– Aceite a proposta e me fale sobre as perguntas quando chegarem.
Surpreendentemente, naquele momento meu pai decidira deixar de lado suas velhas precauções a respeito da duração das ligações. A regra da curta duração das comunicações, seu principal cuidado em quase vinte anos de carreira no crime, parecia não importar mais. Era como se não tivesse interesse em saber que, com toda certeza, o Bloco de Busca e os Pepes estariam rastreando o lugar de onde estava telefonando, como havia acontecido uns dias antes em Aguas Frías, quando ele escapara por um milagre.
– Pai, não ligue mais, vão acabar matando você – eu disse, muito preocupado, quando já estávamos na terceira ligação. Mas ele não deu bola.
O questionário de Lesmes chegou depois das duas horas da tarde. Quando meu pai telefonou outra vez, contei isso para ele, que me pediu para ler as perguntas enquanto “Limón” anotava tudo em um caderno. Ele estava no viva voz. Li as primeiras cinco, e ele me interrompeu e disse que telefonaria em vinte minutos.
Voltou a ligar após o tempo combinado, e comecei a anotar as respostas. Desejei ter letra de médico para poder escrever mais rápido.
– Já, já eu te ligo – disse meu pai na metade das respostas.
Me distraí folheando uma revista quando alguém telefonou. Achei que fosse ele.
– Juan Pablo, aqui quem fala é Gloria Congote. A polícia acaba de confirmar que seu pai foi dado como morto no centro comercial Obelisco, em Medellín.
Fiquei mudo e atordoado. Não podia ser verdade, fazia apenas seis minutos que havíamos nos falado.
– No centro comercial Obelisco de Medellín? E o que ele estava fazendo por lá? Parece muito estranho.
– Foi confirmado.
No mesmo instante, fiz um sinal para que Andrea ligasse o rádio. De fato, as cadeias de rádio já especulavam a possibilidade de que meu pai houvesse sido morto na operação policial.
Quando a notícia havia sido totalmente confirmada, a jornalista continuava no telefone, esperando por uma declaração. Ela conseguiu uma, muito infeliz.
– Não queremos falar nesse momento. Mas digo aos que os mataram: vou pessoalmente matar esses filhos da puta, eu pego sozinho esses malditos.
Desliguei o telefone e chorei, inconsolável. Todos choramos. Mentalmente, isolei-me e comecei a visualizar os passos que precisaria seguir para cumprir minha ameaça. O desejo de vingança era imenso.
Mas chegou um momento de reflexão que seria providencial, pois dois caminhos se apresentaram à minha frente: tornar-me uma versão mais letal de meu pai ou deixar de lado para sempre o seu mau exemplo. Naquele instante, vieram-me à mente os muitos momentos de depressão e tédio que vivemos com meu pai nos esconderijos. Então, pensei que não poderia percorrer o caminho que tantas vezes havia criticado.
Tomei a decisão de retratar-me pelo que acabara de dizer, e sem pensar duas vezes telefonei para o jornalista Yamid Amat, diretor do telejornal cm&. Passaram para ele quase que imediatamente, e eu lhe disse o que havia acontecido com Gloria Congote. Pedi que me desse a oportunidade de me retratar por aquelas declarações, e ele aceitou:
– Quero deixar claro pessoalmente que não me vingarei. Não vou vingar a morte do meu pai, porque agora a única coisa que me preocupa é o futuro da minha sofrida família. Vou lutar para que nossa vida continue e por nossa educação, para sermos pessoas de bem, e se eu puder fazer algo para que haja paz nos próximos séculos neste país, farei isso.
O que aconteceu daí em diante é história. Meu pai morreu em 2 de Dezembro de 1993, às três horas da tarde, e muitos aspectos de sua vida, mas também de sua morte, seguem sendo objeto de análise e discussão.
Ao longo desses 21 anos, surgiram muitas versões sobre a verdadeira autoria dos disparos que provocaram sua morte. Existem numerosas versões a respeito, a última das quais veio à tona em setembro de 2014, quando eu dava os últimos retoques neste livro.
Em seu texto Así matamos al patrón (Assim matamos o patrão), o extraditado e ex-chefe paramilitar Diego Murillo Bejarano, o “dom Berna”, garantiu que seu irmão Rodolfo, de apelido “Semente”, deu o disparo de fuzil que matou meu pai.
Quem o matou? Pouco importa. O que importa, e quero ressaltar isso, é o fato de que o exame forense realizado às seis horas da tarde daquela Quinta-feira pelos especialistas do Instituto de Medicina Legal, John Jairo Duque Alzate e Javier Martínez Medina, indica que ele recebeu três disparos, um dos quais o levou a óbito.
Um dos projéteis partiu de um fuzil de calibre indeterminado, disparado por uma pessoa que estava na rua cobrindo a saída traseira da casa onde meu pai se escondia. Quando saiu pelo telhado e tentou dar meia-volta, porque viu que o lugar estava cercado, foi atingidopelo projétil, que entrou pela parte de trás do ombro e se alojou entre os dentes 35 e 36, segundo o linguajar forense.
O documento menciona um segundo disparo que atingiu a coxa esquerda e gerou um orifício de três centímetros de diâmetro. Não obstante, nas fotografias tiradas momentos depois, não há vestígios de sangue em suas calças. E depois que estenderam seu corpo despido sobre uma lâmina de aço para realizar a autópsia, tampouco foram detectadas feridas na perna esquerda.
Não há dúvidas de que, ao receber o impacto do fuzil no ombro, meu pai caiu sobre as telhas e ficou ali, ferido. Já não tinha como fugir. Por isso quero me referir ao terceiro disparo, que o matou instantaneamente, alocado na “parte superior da concha do pavilhão auricular direito, de forma irregular, ao nível pré-auricular inferior esquerdo, com bordas invertidas”. O projétil, cujo calibre não consta do relatório, entrou pelo lado direito e saiu pelo esquerdo.
Deixo claro que não pretendo abrir uma nova polêmica, mas tenho plena certeza de que esse disparo foi feito por meu pai, da maneira e no lugar onde sempre me disse que daria um tiro para não ser capturado vivo: no ouvido direito.
Em várias ocasiões durante sua implacável perseguição, ele me disse que, no dia em que se encontrasse com seus inimigos, dispararia catorze dos quinze tiros de sua pistola Sig Sauer e guardaria o último para si. Na fotografia em que aparece o corpo de meu pai sobre o telhado, é possível ver que a pistola Glock está no cinto de munições, e, a Sig Sauer, muito próxima. É visível que foi utilizada.
Lembro de um dos momentos em que ele mencionou a possibilidade de tirar a própria vida. Foi quando falava pelo rádio com um de seus homens durante uma busca de apreensão. Nunca esqueci a frase. Tampouco soube que havia sido gravada pelo Bloco de Busca, e escutei-a outra vez depois de sua morte:
“Nunca vão me capturar vivo nessa porra desta vida.”
Manancial: Pablo Escobar, meu pai
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